O que é normal

Ao pesquisar por um vídeo de tour pela casa, por um tutorial de slime ou uma receita de uma sobremesa no YouTube, é fácil imaginar que você não espera um conteúdo produzido em um celular de custo mediano para baixo, com uma parede sem reboco ao fundo e um protagonista que peca em sua oratória. Mesmo procurando algo com que você se identifique, raramente você encontra algo que reflete a sua realidade, e isso é como as coisas ainda funcionam na maioria das vezes. Só que a maré tem mudado, e pessoas mais parecidas com você, menos simétricas e mais palpáveis, têm ganhado espaço na plataforma de vídeo mais acessada da Internet.

Eu lembro quando, durante o intercâmbio, ao fazer uma espécie de diário virtual das minhas descobertas no Canadá, fui descoberto por um grupo de intercambistas do Sul e Sudeste. Pessoas que foram pagando começaram então a caçoar de quem foi através de um programa estadual. O eu de 2015 se sentiu pequeno diante daqueles perfis xenofóbicos que questionavam a validade da minha presença no exterior. Aquele jovem com grandes sonhos e expectativas excluiu os vídeos e ficou na sua. Aquele jovem hoje faz este post, não porque não há mais quem caçoe, mas porque há mais vontade de falar do que medo de quem não quer ouvi-lo.

Como chegamos até aqui

Aposto que você já deve estar cansado de ouvir as palavras “advento” e “Internet” no início de uma frase que fala sobre mudança, inclusão, transformação, seja ela positiva ou negativa para quem profere tal clichê.

Uma das primeiras verdades trazidas pela Internet foi a facilitação do acesso rápido e sob demanda a informação, só que isso, até a chegada dos smartphones e das redes Wi-Fi, era coisa reservada para quem tinha dinheiro para comprar um computador de mesa ou notebook. Mesmo assim, a revolução das tecnologias móveis com o lançamento do iPhone (2007) foi só o começo, exclusivo para quem podia tirar do seu bolso para investir em um desses aparelhos, os únicos do seu tipo no mercado na época.

Hoje, temos não só vários tipos de smartphones, mas vários tipos de usuários e propósitos para a aquisição desses pequenos grandes instrumentos. Em 2018, onze anos após Steve Jobs apresentar-nos o seu telefone inteligente e com bem menos teclas do que estávamos acostumados, já tínhamos mais celulares ativos (220 milhões) do que habitantes no Brasil (208 milhões). Quanto mais o tempo passou, mas modelos apareceram, mais competitivo ficou o mercado, e mais fácil ficou de conseguir um celular. Isso significa que até os detentores de um único salário mínimo passaram a ter algo que só os mais estribados tinham uma vez empunharam.

Uma diferença geracional nítida é que eu tive meu primeiro celular com 15 anos, e ele nem tinha acesso à Internet. Enquanto isso, meu primo, de 8, já tem tablet e só não tem telefone porque não precisa ligar para ninguém. Eu confesso que, ironicamente, a última coisa que faço com meu celular é ligar para as pessoas… (Coitado do aplicativo de Telefone do meu telefone.) Outro abismo interessante é que minha bisavó nem tem televisão na casa dela, um rádio já basta. Minha avó, a filha dela, por outro lado, tem uma smart TV, e apesar de não saber ler, tem seus YouTubers preferidos, dentre eles, uma dos quais falarei mais adiante.

O lugar do pobre

O lugar do pobre então é acessando os mesmos espaços que o rico, pelo menos virtualmente, pelo menos aqueles que são gratuitos, justamente os mais movimentados. Mas até pouco tempo atrás, não era comum ver uma pessoa de baixa renda sendo, além de consumidora, produtora de conteúdo, porque assim como é raro haver um negro numa turma de estudantes de Medicina, é peculiar ver uma pessoa que não anda em círculos de porcelanato e aço escovado não só se mostrando na Internet, mas ganhando notoriedade e dinheiro com isso.

Eu lembro de um exemplo áureo do pobre enquanto estrela do conteúdo e esse conteúdo enquanto algo rentável. A página “Bode Gaiato”, no Facebook, hoje um clássico, traz vivências, linguagem e estética propriamente nordestinas que são caricaturescas e exageradas, mas não desrespeitosas, o que não se pode dizer o mesmo dos sotaques que muitos atores globais do Sudeste injetam em seus personagens ditos nordestinos. E então, chegamos a nossa grande diferença: quando você se descreve e não é mais apenas descrito, a sua imagem é realmente sua, ainda que coberta por diversos feixes de preconceito de classe. Quando você tem o poder de se mostrar, não há uma emulação alheia impregnada de conceitos superficiais e que, até quando recheada de boas intenções, falha em te representar dignamente.

La imagen puede contener: una o varias personas y texto
Fonte: https://www.facebook.com/BodeGaiato/photos/a.653549091375020/2556547147741862/

 

Do jeitinho que for

Se há espaço para o pobre acessar, e há vontade dele de criar, não existe palco mais largo e barato do que a Internet. E se pararmos para pensar, os segmentos aqui tratados, de vlog, tutoriais e esquetes nada mais são do que retratos da vida de seus protagonistas, o que implica diretamente a inclusão dos elementos que compõem o seu dia a dia, seja ele elitizado ou marginalizado.

Então, quando pensamos em uma YouTuber do interior do Ceará, o que deve nos surpreender não é a sua existência, mas a sua solidão. Não há muita gente que se veja capaz de produzir conteúdo leve e pessoal, simplesmente porque a rede que compõe esse ambiente não reflete nem incentiva muita diversidade que saia da linha de grandeza tornada banal, quando, na verdade, ter uma casa chique é a exceção, e ter uma casa dita humilde é o comum. Então, por que não temos mais YouTubers que tenham a nossa cara e o nosso jeitinho se a maioria das visualizações que sustentam o YouTube vem de celulares que não são top de linha, que acessam a Internet de um plano pré-pago ou de um pacote domiciliar básico e são segurados por mãos que não manuseiam vários cartões de crédito diariamente?

O mais refrescante e animador nos exemplos trazidos aqui é que eles são do pobre que chega a milhares (e quem sabe, um dia, milhões) de visualizações sem querer emular a vivência do rico, sem ostentar, sem entrar em dívidas absurdas para fingir um poder aquisitivo, para se enganar em um falso pertencimento a uma classe que não é a sua. Alguns deles, como o Anderson (@Andercrazyy) fazem até sátira sobre suas características físicas e condições financeiras -tantas vezes rechaçadas e diminuídas- sem alimentar nenhum complexo de vira-lata e endossando um amor próprio que contrapõe a inferioridade tradicionalmente ensinada a quem tem menos (traços europeus ou verdinhas na carteira) nesta nossa sociedade capitalista.

View this post on Instagram

Acontece com vcs? Kkkk

A post shared by Andercrazyy🌈 (@andercrazyy) on

Eu já me questionei se mereço e devo estar na universidade. A Lucélia, a Bianca e o Seu Nilson já se questionaram se o YouTube é lugar para eles. Nós continuamos, e há olhares que nos cercam e nos interpretam como impostores, alienígenas insolentes, almas audaciosas que não sabem onde estão se metendo. Enquanto isso, nós continuamos, e mudamos as caras da universidade e do YouTube, porque elas não são estáticas, e nossas existências não são as mesmas dos nossos antepassados, ainda que carreguemos as cicatrizes e fardos que não são inerentes a nossa pessoa, mas que os senhores de pele branca, dentre alinhados e cabelos lisos querem que acreditemos ser.

Nós temos mais consciência do que acreditamos, e muitas vozes só querem que nos calemos, que nos mantenhamos em nossos lugares de espectadores passivos. Entretanto, nossa vontade de falar independe de quem quer nos ouvir, ou como diz Victor Hugo, “não ser ouvido não é razão para silenciar-se”. Entretenimento diversificado não é só ócio e prazer, é pavio de pulga atrás de orelha, ponto de ignição para alguns porquês.

No nosso caso, não é sobre não ser ouvido -já que a Internet é cada vez mais acessível-, mas sobre não ter nossa voz bem quista. Tem gente que lê os textos que eu faço na universidade. Tem gente que assiste aos vídeos da Lucélia, da Bianca e do Seu Nilson, uma delas é a minha mãe, que era refém da televisão para poder assistir coisas como “Senhora do Destino” em um determinado horário, mas hoje vê o que quer, quando quer, em sua televisão inteligente. Hoje, ao invés de se ver numa imagem não tão fiel em uma novela, ela se vê refletida na tela ligada e desligada.

Quando nos virem

O simples e grandioso fato de nos conectarmos é uma forma de resistência. A Internet veio para ficar, e nela, já não somos apenas os olhos cheios de admiração pelo que não temos e a lamentação pelo que não temos. Somos isso quando nos falta consciência, mas somos fortes e orgulhosos quando ela vinga, seja menina ou em abundância. Seja em um blog com pouco mais de 200 seguidores, em um canal que o YouTube custa a monetizar, em um Instagram que serve como piadas para alguns, nós existimos, nós queremos nossa parte em todo lugar.

Quando eles nos veem, têm medo, porque nossas verdades são mais complexas do que eles imaginam. Não importa a qualidade da câmera, a precisão da edição, o maniqueísmo do roteiro. Se há minoria falando, há minoria se conectando, correndo o risco de se perceber maioria, erguendo senso de valor e criação, documento sua cultura, deixando de ser invisível. Quando nos atrevemos a ocupar espaços que não parecem feitos para nós, nos tornamos arquitetos de nossas trajetórias, adentramos o que eles jamais sonham para nós, nossa voz.