e às vezes, por mais do que você deveria, de tanto estar acostumado a não ser lembrado, você não se dá a glória de se ver e se perde na ilusão de que sua existência não é relevante
e essas vezes são tão raras e subestimadas que você tende mais a menosprezá-las por sua escassez do que admirá-las pela sua resistência em causar uma pequena fissura no teto de vidro
mesmo o espelho sendo uma esfera, de algum modo, ele quase nunca está virado para você com a mínima nitidez, e quando isso acontece, então, assumir que é só mais um truque não parece a ideia mais pessimista. sonhar em se ver cansa porque quando você desperta fica fácil não se encontrar onde as pessoas prestam atenção
então, se o seu reflexo é embaçado, podado, coisa miúda que quando ocorre com dignidade nem o próprio dono o valoriza, a sua vivência se torna subvivência até para quem a protagoniza, e agonia fica ainda mais aguda quando não respeitada, e as migalhas de respeito se dissipam no espelho quando as manchas são esparramadas ao invés de assumidas
não é só um café com leite e sem açúcar, não é só um pacote de salgadinho de cebola esquecido aberto em cima da mesa, não é só o vazio de visibilidade, mas a crença construída desde nascença de que não há luz suficiente para iluminar uma pele tão escura, não há palco tão forte que suporte o peso de tal gordura enquanto segura todas as luzes, que ainda assim, não bastarão. sempre falta algo, e a falta se torna o motivo mór da adoração da exclusão como um algoz imbatível
mas hoje não é como tem sido, só por um segundo, a gratidão triunfa sobre a conformidade, e o auge da autoestima é a consciência de que a imperfeição não é algo que se herda, diferente da desigualdade. por uma hora antes de o sol nascer, antes de a conta de luz abusiva chegar por baixo da porta e a perna da cadeira rachar, do outro lado do espelho há um brilho que conversa com o seu. eles são irmãos que mal se veem, que mal se reconhecem, que mal existem para além de seus ninhos ditos não-rentáveis
hoje a esfera não parece maior para você, mas você se vê maior do que te sonham, porque, na realidade, pequeno é o pensamento de que a justiça é serva da estética. amanhã, a euforia do agora epifânico pode ser só uma mancha prestes a ser esparramada na tela desligada, mas hoje não tem sido assim
texto inspirado na série “Euphoria”